12/09/11

FRANQUEIRA

Franqueira
Aparecia de mansinho, cosido pelos seus pensamentos, discreto, sempre aprumado, fingindo-se distraído, mas quando falava, calava-nos a todos; a voz era forte e bem sincopada. Não sabíamos bem onde começava a Escola Agrícola e onde começava o Franqueira. Calava-nos porque emanava o calor da chama interior que alguns seres misteriosamente adquirem perante os outros. Com ele a Escola era um imenso jardim cuidado por um milhão de jardineiros sem horário. Rectidão, honestidade, tolerância e um imenso respeito e carinho pelos seus alunos da Escola de Regentes Agrícolas de Santarém. Já agora por Santarém também. Já agora pela Escola de Regentes Agrícolas de Coimbra também.
Foi professor com letras muito gordas e muito grandes, de quase todos os alunos que tiveram a alegria de fazer o curso de Regente Agrícola, na Escola de Regentes Agrícolas de Santarém. Eu detestava a disciplina de Sanidade Vegetal, exercício doloroso sobretudo de memória, em prejuízo da minha propensão para pintar as respostas, para esconder a minha ignorância, o que com o Franqueira não resultava. Fora da sacralidade da sala de aula, misturava-se no meio dos alunos, sabia as nossas alcunhas todas, sabia os nossos apelidos todos, sabia de onde éramos e mais ainda, sabia porque preocupava-se com isso, sabia dizia eu da condição social e familiar da cada aluno.
Era, olhava para os alunos todos, como que se eles estivessem à sua guarda e fossem quase que seus filhos.
Posso garantir-vos que este húmus comportamental, abraçou todas as gerações que passaram pelas aulas dele, e quando agora, nos últimos anos, passei a poder sentar-me ao lado dele na Bijou, promovido a tertuliano habitual, as conversas saltavam do Inês que era de Chaves, para o Bettencourt que era dos Açores e que o pai era pescador, do papa-figos que era de Cernache e que o pai era notário. Contava de tal modo, que as horas passavam, como se estivéssemos no cinema a ver um filme interessante. Escusado será dizer, que de vez em quando lá saía uma gargalhada do grupo. Algumas que ele sabia eram um bocado picantes. As gargalhadas que ele dava faziam abanar os vidros da pastelaria.
Quando o comparei, na forma como contava as coisas vividas ao Vitorino Nemésio, pessoa que eu com onze anos via obrigatoriamente, todas as semanas na televisão daqueles tempos a preto e branco, ele disse-me que se o outro soubesse do disparate que eu tinha dito ressuscitaria para protestar. Mas também quem lhe mandou dizer que eu merecia vinte a filosofia, mas zero à disciplina dele?
Não me apetece assinar esta pequena lembrança, por um lado, podia ser assinada por centenas de alunos, por outro se o fizesse podia parecer que me quereria agigantar para um qualquer protagonismo e acho que ele quando ler isto, vai sorrir e perdoar-me pelas preocupações que lhe dei. Não a assino como leve penitência pelas discussões que tive com ele, se calhar o que agora faço, de certa maneira é exactamente o mesmo que todos que já sentimos saudades dele fariam.
Já agora, em nome daqueles que também não assinam esta carta, queremos propor à cidade de Santarém, que para humanizar alguma área condigna lhe atribua o nome do nosso querido e saudoso Franqueira. Com isso Santarém ficaria maior. Ao nome podem acrescentar “Professor distinto”.
Alto ao Alto Charrua!

In Memoriam FRANQUEIRA